sábado, outubro 27, 2012

OS NOVOS EVAGÉLICOS



Um movimento de fiéis critica o consumismo, a corrupção e os dogmas das igrejas- e propõe uma nova reforma protestante.



Rani Rosique não é apóstolo, bispo, presbítero nem pastor. É apenas um cirurgião geral de 49 anos em Ariquemes, cidade de 80 mil habitantes do interior de Rondônia. No alpendre da casa de uma amiga professora, ele se prepara para falar. Cercado por conhecidos, vizinhos e parentes da anfitriã, por 15 minutos Rosique conversa sobre o salmo primeiro (“Bem-aventurado o homem que não anda segundo o conselho dos ímpios”). Depois, o grupo de umas 15 pessoas ora pela última vez – como já havia orado e cantado por cerca de meia hora antes – e então parte para o tradicional chá com bolachas, regado a conversa animada e íntima.



Desde que se converteu ao cristianismo evangélico, durante uma aula de inglês em Goiânia em 1969, Rosique pratica sua fé assim, em pequenos grupos de oração, comunhão e estudo da Bíblia. Com o passar do tempo, esses grupos cresceram e se multiplicaram. Hoje, são 262 espalhados por Ariquemes, reunindo cerca de 2.500 pessoas, organizadas por 11 “supervisores”, Rosique entre eles. São professores, médicos, enfermeiros, pecuaristas, nutricionistas, com uma única característica comum: são crentes mais experientes.

Apesar de jamais ter participado de uma igreja nos moldes tradicionais, Rosique é hoje uma referência entre líderes religiosos de todo o Brasil, mesmo os mais tradicionais. Recebe convites para falar sobre sua visão descomplicada de comunidade cristã, vindos de igrejas que há 20 anos não lhe responderiam um telefonema. Ele pode ser visto como um “símbolo” do período de transição que a igreja evangélica brasileira atravessa. Um tempo em que ritos, doutrinas, tradições, dogmas, jargões e hierarquias estão sob profundo processo de revisão, apontando para uma relação com o Divino muito diferente daquela divulgada nos horários pagos da TV.

Estima-se que haja cerca de 46 milhões de evangélicos no BrasilSeu crescimento foi seis vezes maior do que a população total desde 1960, quando havia menos de 3 milhões de fiéis espalhados principalmente entre as igrejas conhecidas como históricas (batistas, luteranos, presbiterianos e metodistas). Na década de 1960, a hegemonia passou para as mãos dos pentecostais, que davam ênfase em curas e milagres nos cultos de igrejas como Assembleia de Deus, Congregação Cristã no Brasil e O Brasil Para Cristo. A grande explosão numérica evangélica deu-se na década de 1980, com o surgimento das denominações neopentecostais, como a Igreja Universal do Reino de Deus e a Renascer. Elas tiraram do pentecostalismo a rigidez de costumes e a ele adicionaram a “teologia da prosperidade” (leia o quadro abaixo). Há quem aposte que até 2020 metade dos brasileiros professará à fé evangélica.




 Símbolo

O cirurgião Irani Rosique (sentado, de camisa branca, com a Bíblia aberta no colo). Sem cargo de clérigo, ele mobiliza 2.500 pessoas no interior de Rondônia.







Dentro do próprio meio, levantam-se vozes críticas a esse crescimento. Segundo elas, esse modelo de igreja, que prospera em meio a acusações de evasão de divisas, tráfico de armas e formação de quadrilha, tem sido mais influenciado pela sociedade de consumo que pelos ensinamentos da Bíblia. “O movimento evangélico está visceralmente em colapso”, afirma o pastor Ricardo Gondim, da igreja Betesda, autor de livros como Eu creio, mas tenho dúvidas: a graça de Deus e nossas frágeis certezas (Editora Ultimato). “Estamos vivendo um momento de mudança de paradigmas. Ainda não temos as respostas, mas as inquietações estão postas, talvez para ser respondidas somente no futuro.”


Nos Estados Unidos, a reinvenção da igreja evangélica está em curso há tempos. A igreja Willow Creek de Chicago trabalhava sob o mote de ser “uma igreja para quem não gosta de igreja” desde o início dos anos 1970. Em São Paulo, 20 anos depois, o pastor Ed René Kivitz adotou o lema para sua Igreja Batista, no bairro da Água Branca – e a ele adicionou o complemento “e uma igreja para pessoas de quem a igreja não costuma gostar”. Kivitz é atualmente um dos mais discutidos pensadores do movimento protestante no Brasil e um dos principais críticos da “religiosidade institucionalizada”. Durante seu pronunciamento num evento para líderes religiosos no final de 2009, Kivitz afirmou: “Esta igreja que está na mídia está morrendo pela boca, então que morra. Meu compromisso é com a multidão agonizante, e não com esta igreja evangélica brasileira.”

Essa espécie de “nova reforma protestante” não é um movimento coordenado ou orquestrado por alguma liderança central. Ela é resultado de manifestações espontâneas, que mantêm a diversidade entre as várias diferenças teológicas, culturais e denominacionais de seus ideólogos. Mas alguns pontos são comuns. O maior deles é a busca pelo papel reservado à religião cristã no mundo atual. Um desafio não muito diferente do que se impõe a bancos, escolas, sistemas políticos e todas as instituições que vieram da modernidade com a credibilidade arranhada. “As instituições estão todas sub judice”, diz o teólogo Ricardo Quadros Gouveia, professor da Universidade Mackenzie de São Paulo e pastor da Igreja Presbiteriana do Bairro do Limão. “Ninguém tem dúvida de que espiritualidade é uma coisa boa ou que educação é uma coisa boa, mas as instituições que as representam estão sob suspeita.”

Uma das saídas propostas por esses pensadores é despir tanto quanto possível os ensinamentos cristãos de todo aparato institucional. Segundo eles, a igreja protestante (ao menos sua face mais espalhafatosa e conhecida) chegou ao novo milênio tão encharcada de dogmas, tradicionalismos, corrupção e misticismo quanto a Igreja Católica que Martinho Lutero tentou reformar no século XVI. “Acabamos nos perdendo no linguajar ‘evangeliquês’, no moralismo, no formalismo, e deixamos de oferecer respostas para nossa sociedade”, afirma o pastor Miguel Uchôa, da Paróquia Anglicana Espírito Santo, em Jaboatão dos Guararapes, Grande Recife. “É difícil para qualquer pessoa esclarecida conviver com tanto formalismo e tão pouco conteúdo."




“É lisonjeador saber que nos consideram ‘pensadores’. Mas o grande problema dos evangélicos brasileiros não é de inteligência. É de ética e honestidade” RICARDO AGRESTE, pastor da Comunidade Presbiteriana Chácara Primavera, em Campinas, São Paulo.

Uchôa lidera a maior comunidade anglicana da América Latina. Seu trabalho é reconhecido por toda a cúpula da denominação como um dos mais dinâmicos do país. Ele é um dos grandes entusiastas do movimento inglês Fresh Expressions, cujo mote é “uma igreja mutante para um mundo mutante”. Seu trabalho é orientar grupos cristãos que se reúnem em cafés, museus, praias ou pistas de skate. De maneira genérica, esses grupos são chamados de “igreja emergente” desde o final da década de 1990. “O importante não é a forma”, afirma Uchôa. “É buscar a essência da espiritualidade cristã, que acabou diluída ao longo dos anos, porque as formas e hierarquias passaram a ser usadas para manipular pessoas. É contra isso que estamos nos levantando.”


No meio dessa busca pela essência da fé cristã, muitas das práticas e discursos que eram característica dos evangélicos começaram a ser considerados dispensáveis. Às vezes, até condenáveis. Em Campinas, no interior de São Paulo, ocorre uma das experiências mais interessantes de recriação de estruturas entre as denominações históricas. A Comunidade Presbiteriana Chácara Primavera não tem um templo. Seus frequentadores se reúnem em dois salões anexos a grandes condomínios da cidade e em casas ao longo da semana. Aboliram a entrega de dízimos e as ofertas da liturgia. Os interessados em contribuir devem procurar a secretaria e fazê-lo por depósito bancário – e esperar em casa um relatório de gastos. Os sermões são chamados, apropriadamente, de “palestras” e são ministrados com recursos multimídias por um palestrante sentado em um banquinho atrás de um MacBook. A meditação bíblica dominical é comumente ilustrada por uma crônica de Luis Fernando Veríssimo ou uma música de Chico Buarque de Hollanda.



                                 
 Miguel Uchôa e bispo Robinson Cavalcanti, da Diocese do Recife (crédito: Revista Época)


“O que importa é buscar a essência do cristianismo, que acabou diluída porque as formas e hierarquias passaram a ser usadas para manipular pessoas” MIGUEL UCHÔA, pastor anglicano (à esquerda na foto, ao lado do bispo Robinson Cavalcanti, da Diocese do Recife)



“Os seminários teológicos formam ministros para um Brasil rural em que os trabalhos são de carteira assinada, as famílias são papai, mamãe, filhinhos e os pastores são pessoas respeitadas”, diz Ricardo Agreste, pastor da Comunidade e autor dos livros Igreja? Tô fora e A jornada (ambos lançados pela Editora Socep). “O risco disso é passar a vida oferecendo respostas a perguntas que ninguém mais nos faz. Há muita gente séria, claro, dizendo verdades bíblicas, mas presas a um formato ultrapassado.”

Outro ponto em comum entre esses questionadores é o rompimento declarado com a face mais visível dos protestantes brasileiros: os neo pentecostais. “É lisonjeador saber que atraímos gente com formação universitária e que nos consideram ‘pensadores’”, afirma Ricardo Agreste. “O grande problema dos evangélicos brasileiros não é de inteligência, é de ética e honestidade.” Segundo ele, a velha discussão doutrinária foi substituída por outra. “Não é mais uma questão de pensar de formas diferentes a espiritualidade cristã”, diz. “Trata-se de entender que há gente usando vocabulário e elementos de prática cristã para ganhar dinheiro e manipular pessoas.”

Esse rompimento da cordialidade entre os evangélicos históricos e os neo pentecostais veio a público na forma de livros e artigos. A jornalista (evangélica) Marília Camargo César publicou no final de 2008 o livro Feridos em nome de Deus (Editora Mundo Cristão), sobre fiéis decepcionados com a religião por causa de abusos de pastores. O teólogo Augustus Nicodemus Lopes, chanceler da Universidade Presbiteriana Mackenzie, publicou O que estão fazendo com a Igreja: ascensão e queda do movimento evangélico brasileiro (Mundo Cristão), retrato desolador de uma geração cindida entre o liberalismo teológico, os truques de marketing, o culto à personalidade e o esquerdismo político. Em um recente artigo, o presidente do Centro Apologético Cristão de Pesquisas, João Flavio Martinez, definiu como “macumba para evangélico” as práticas místicas da Igreja Universal do Reino de Deus, como banho de descarrego e sabonete com extrato de arruda.

Tais críticas, até pouco tempo atrás, ficavam restritas aos bastidores teológicos e às discussões internas nas igrejas. Livros mais antigos – como Super crentes, Evangélicos em crise, Como ser cristão sem ser religioso e O evangelho maltrapilho (todos da editora Mundo Cristão) – eram experiências isoladas, às vezes recebidos pelos fiéis como desagregadores. “Parece que a sociedade se fartou de tanto escândalo e passou a dar ouvidos a quem já levantava essas questões há tempos”, diz Mark Carpenter, diretor-geral da Mundo Cristão.



“As pessoas não querem mais dogmas, elas querem autenticidade. Minha postura é, juntos, buscarmos algumas respostas satisfatórias a nossas inquietações” ED RENÉ KIVITZ, pastor da Igreja Batista da Água Branca, em São Paulo

O pastor Kivitz – que publicou pela Mundo Cristão seus livros Outra espiritualidade e O livro mais mal-humorado da Bíblia – distingue essa crítica interna daquela feita pela mídia tradicional aos neo pentecostais “A mídia trata os evangélicos como um fenômeno social e cultural. Para fazer uma crítica assim, basta ter um pouco de bom-senso. Essa crítica o (programa) CQC já faz, porque essa igreja é mesmo um escracho”, diz ele. “Eu faço uma crítica diferente, visceral, passional, porque eu sou evangélico. E não sou isso que está na televisão, nas páginas policiais dos jornais. A gente fica sem dormir, a gente sofre e chora esse fenômeno religioso que pretende ser rotulado de cristianismo.”



A necessidade de se distinguir dos neo pentecostais também levou essas igrejas a reconsiderar uma série de práticas e até seu vocabulário. Pastores e “leigos” passam a ocupar o mesmo nível hierárquico, e não há espaço para “ungidos” em especial. Grandes e imponentes catedrais e “cultos shows” dão lugar a reuniões informais, em pequenos grupos, nas casas, onde os líderes podem ser questionados, e as relações são mais próximas. O vocabulário herdado da teologia triunfalista do Antigo Testamento (vitória, vingança, peleja, guerra, maldição) é reconsiderado. Para superar o desgaste dos termos, algumas igrejas preferem ser chamadas de “comunidades”, os cultos são anunciados como “reuniões” ou “celebrações” e até a palavra “evangélico” tem sido preterida em favor de “cristão” – o termo mais radical. Nem todo mundo concorda, evidentemente. “Eles (os neo pentecostais) é que não deveriam ser chamados de evangélicos”, afirma o bispo anglicano Robinson Cavalcanti, da Diocese do Recife. “Eles é que não têm laços históricos, teológicos ou éticos com os evangélicos.”

Um dos maiores estudiosos do fenômeno evangélico no Brasil, o sociólogo Ricardo Mariano (PUC-RS), vê como natural o embate entre neo pentecostais e as lideranças de igrejas históricas. Ele lembra que, desde o final da década de 1980, quando o neo pentecostalismo ganhou força no Brasil, os líderes das igrejas históricas se levantaram para desqualificar o movimento. “O problema é que não há nenhum órgão que regule ou fale em nome de todos os evangélicos, então ninguém tem autoridade para dizer o que é uma legítima igreja evangélica”, afirma.





Procurado por ÉPOCA, Geraldo Tenuta, o Bispo Gê, presidente nacional da Igreja Renascer em Cristo, preferiu não entrar em discussões. “Jesus nos ensinou a não irmos contra aqueles que pregam o evangelho, a despeito de suas atitudes”, diz ele. “Desde o início, éramos acusados disto ou daquilo, primeiro porque admitíamos rock no altar, depois porque não tínhamos usos e costumes. Isso não nos preocupa. O que não é de Deus vai desaparecer, e não será por obra dos julgamentos.” A Igreja Universal do Reino de Deus – que, na terceira semana de julho, anunciou a construção de uma “réplica do Templo de Salomão” em São Paulo, com “pedras trazidas de Israel” e “maior do que a Catedral da Sé” – também foi procurada por ÉPOCA para comentar os movimentos emergentes e as críticas dirigidas à igreja. Por meio de sua assessoria, o bispo Edir Macedo enviou um e-mail com as palavras: “Sem resposta”.


O sociólogo Ricardo Mariano, autor do livro Neo pentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil (Editora Loyola), oferece uma explicação pragmática para a ruptura proposta pelo novo discurso evangélico. Ateu, ele afirma que o objetivo é a busca por uma certa elite intelectual, um público mais bem informado, universitário, mais culto que os telespectadores que enchem as igrejas populares. “Vivemos uma época em que o paciente pesquisa na internet antes de ir ao consultório e é capaz de discutir com o médico, questionar o professor”, diz. “Num ambiente assim, não tem como o pastor proibir nada. Ele joga para a consciência do fiel.”


A maior parte da movimentação crítica no meio evangélico acontece nas grandes cidades. O próprio pastor Kivitz afirma que “talvez não agisse da mesma forma se estivesse servindo alguma comunidade em um rincão do interior” e que o diálogo livre entre púlpito e auditório passa, necessariamente, por uma identificação cultural. “As pessoas não querem dogmas, elas querem honestidade”, diz ele. “As dúvidas delas são as minhas dúvidas. Minha postura é, juntos, buscarmos respostas satisfatórias a nossas inquietações.”


Por isso mesmo, Ricardo Mariano não vê comparação entre o apelo das novas igrejas protestantes e das neo pentecostais. “O destino desses líderes será ‘pescar no aquário’, atraindo insatisfeitos vindos de outras igrejas, ou continuar falando para meia dúzia de pessoas”, diz ele. De acordo com o presbiteriano Ricardo Gouveia, “não há, ou não deveria haver, preocupação mercadológica” entre as igrejas históricas. “Não se trata de um produto a oferecer, que precise ocupar espaço no mercado”, diz ele. “Nossa preocupação é simplesmente anunciar o evangelho, e não tentar ‘melhorá-lo’ ou torná-lo mais interessante ou vendável.”


O advento da internet foi fundamental para pastores, seminaristas, músicos, líderes religiosos e leigos decidirem criar seus próprios sites, portais, comunidades e blogs. Um vídeo transmitido pela Igreja Universal em Portugal divulgando o Contrato da fé – um “documento”, “autenticado” pelos pastores, prometendo ao fiel a possibilidade de se “associar com Deus e ter de Deus os benefícios” – propagou-se pela rede, angariando toda sorte de comentários. Outro vídeo, em que o pregador americano Moris Cerullo, no programa do pastor Silas Malafaia, prometia uma “unção financeira dos últimos dias” em troca de quem “semear” um “compromisso” de R$ 900 também bombou na rede. Uma cópia da sentença do juiz federal Fausto De Sanctis (lembre AQUI) condenando os líderes da Renascer Estevam e Sônia Hernandes por evasão de divisas circulou no final de 2009. De Sanctis afirmava que o casal “não se lastreia na preservação de valores de ética ou correção, apesar de professarem o evangelho”. “Vergonha alheia em doses quase insuportáveis” foi o comentário mais ameno entre os internautas.




Sites como Pavablog, Veshame Gospel, Irmãos.com, Púlpito Cristão,  ou Cristianismo Criativo fazem circular vídeos, palestras e sermões e debatem doutrinas e notícias com alto nível de ousadia e autocrítica. De um grupo de blogueiros paulistanos, surgiu a ideia da Marcha pela ética, um protesto que ocorre há dois anos dentro da Marcha para Jesus (evento organizado pela Renascer). Vestidos de preto, jovens carregam faixas com textos bíblicos e frases como “O $how tem que parar” e “Jesus não está aqui, ele está nas favelas”.


A maior parte desses blogueiros trafega entre assuntos tão diversos como teologia, política, televisão, cinema e música popular. O trânsito entre o “secular” e o “sagrado” é uma das características mais fortes desses novos evangélicos. “A espiritualidade cristã sempre teve a missão de resgatar a pessoa e fazê-la interagir e transformar a sociedade”, diz Ricardo Agreste. “Rompemos o ostracismo da igreja histórica tradicional, entramos em diálogo com a cultura e com os ícones e pensamento dessa cultura e estamos refletindo sobre tudo isso.”


Em São Paulo, o capelão Valter Ravara criou o Instituto Gênesis 1.28, uma organização que ministra cursos de conscientização ambiental em igrejas, escolas e centros comunitários. “É a proposta de Jesus, materializar o amor ao próximo no dia a dia”, afirma Ravara. “O homem sem Deus joga papel no chão? O cristão não deve jogar.” Ravara publicou em 2008 a Bíblia verde, com laminação biodegradável, papel de reflorestamento e encarte com textos sobre sustentabilidade.


“O homem sem Deus joga papel no chão? O cristão não deve jogar. É a proposta de Jesus, materializar o amor ao próximo no dia a dia” VALTER RAVARA, “ecocapelão”, criador do Instituto Gênesis 1.28 e da Bíblia verde

A então ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, escreveu o prefácio da Bíblia verde. Sua candidatura à Presidência da República angariou simpatia de blogueiros e tuiteiros, mas não o apoio formal da Assembleia de Deus, denominação a que ela pertence. A separação entre política e religião pregada por Marina é vista como um marco da nova inserção social evangélica. O vereador paulistano e evangélico Carlos Bezerra Jr. afirma que o dever do político cristão é “expressar o Reino de Deus” dentro da política. “É o oposto do que fazem as bancadas evangélicas no Congresso, que existem para conseguir facilidades para sua denominação e sustentar impérios eclesiásticos”, diz ele.

DA WEB ÀS RUAS – Blogueiros que organizam a Marcha pela ética, um movimento de protesto incrustado dentro da Marcha para Jesus, promovida pela Renascer



O raciocínio antissectário se espalhou para a música. Nomes como Palavrantiga, Crombie, Tanlan, Eduardo Mano, Helvio Sodré e Lucas Souza se definem apenas como “música feita por cristãos”, não mais como “gospel”. Eles rompem os limites entre os mercados evangélico e pop. O antissectarismo torna os evangélicos mais sensíveis a ações sociais, das parcerias com ONGs até uma comunidade funcionando em plena Cracolândia, no centro de São Paulo. “No fundo, nossa proposta é a mesma dos reformadores”, diz o presbiteriano Ricardo Gouveia. “É perceber o cristianismo como algo feito para viver na vida cotidiana, no nosso trabalho, na nossa cidadania, no nosso comportamento ético, e não dentro das quatro paredes de um templo.”

A teologia chama de “cristocêntrico” o movimento empreendido por esses crentes que tentam tirar o cristianismo das mãos da estrutura da igreja – visão conhecida como “eclesiocêntrica” – e devolvê-lo para a imaterialidade das coisas do espírito. É uma versão brasileiramente mais modesta do que a Igreja Católica viveu nos tempos da Reforma Protestante. Desta vez, porém, dirigida para a própria igreja protestante. Depois de tantos desvios, vozes internas levantaram-se para propor uma nova forma de enxergar o mundo. E, como efeito, de ser enxergadas por ele. Nas palavras do pastor Kivitz: “Marx e Freud nos convenceram de que, se alguém tem fé, só pode ser um estúpido infantil que espera que um Papai do Céu possa lhe suprir as carências. Mas hoje gostaríamos de dizer que o cristianismo tem, sim, espaço para contribuir com a construção de uma alternativa para a civilização que está aí. Uma sociedade que todo mundo espera, não apenas aqueles que buscam uma experiência religiosa”.

Fonte: Revista  Época n° 638

COMO SERÁ O BRASIL EVANGÉLICO EM 2020?



Capa revista eclésia
Longe de ser um exercício de futurologia, o momento em que a maioria dos brasileiros será protestante fica cada vez mais próximo. Porém, com sucessivos escândalos e teologias alienantes que contaminam os púlpitos, permanece a dúvida sobre que tipo de crentes

Cena um: uma das mais importantes revistas semanais do país publicou recentemente uma extensa reportagem fazendo projeções sobre o futuro do Brasil. Apesar de tratar de diversos temas, da educação à economia, a notícia que realmente caiu como uma bomba e acabou repercutida pela imprensa, por emissoras de rádio e de televisão e por blogs e sites de discussão na internet dizia respeito à religião: o maior país católico do mundo na atualidade se tornará evangélico em poucos anos. Mais precisamente em 2020, a continuarem as impressionantes taxas de crescimento, mais da metade dos brasileiros pertencerá a alguma igreja protestante. Estima-se que já neste mês de dezembro, o número de evangélicos no Brasil chegue próximo dos 50 milhões e, pouco mais de uma década depois, atinja a marca de 105 milhões de pessoas.

Cena dois: após realizarem uma investigação que durou mais de dois anos, promotores do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público de São Paulo, acusaram o bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, e mais nove pessoas ligadas à denominação, pelo desvio de 8 bilhões de reais de dízimos e contribuições ofertadas por fieis. A dinheirama não teria sido usada em atividades religiosas, mas para aumentar patrimônio pessoal e conseguir lucro, com a -compra de duas emissoras de televisão, terrenos, mansões, um prédio e até um caríssimo jatinho modelo Cessna. A Justiça deu prazo para a defesa se pronunciar e pode aceitar a denúncia. Se assim for, Macedo e seu grupo tornam-se réus num processo criminal que pode condená-los por formação de quadrilha e lavagem de dinheiro.

Ao mesmo tempo em que os evangélicos crescem numericamente e aumentam de forma considerável sua influência em todas as esferas da vida nacional, escândalos e denúncias envolvendo dinheiro, sexo e abuso de poder multiplicam-se e maculam a imagem das igrejas e de seus líderes. Fala-se em relativização moral e secularização da fé. Em uma geração de crentes que busquem vantagens e não mais a Deus. Em que pese o fato de que por trás das últimas denúncias envolvendo a Universal exista uma guerra de interesses e de cifras na qual estão os principais grupos de comunicação do país, ou mesmo que esteja em curso uma batalha espiritual contra a expansão do Reino de Deus, as críticas e acusações sobre o que acontece nos templos de Norte a Sul do país são tão sérias que, ignorá-las, seria mesmo anti-bíblico. Na esteira do avanço protestante em terras tupiniquins, estudiosos das ciências da religião costumam avaliar que esse fenômeno pode ser muito bom, uma vez que “os evangélicos não vão apenas mudar a sociedade, mas mudarão com ela”. Tal afirmação tem causado arrepios em pastores e trazido um sério questionamento para os cristãos: diante de tal quadro já hoje: afinal, como será esse Brasil evangélico de 2020?

Se o questionamento daqueles que não aceitam o crescimento protestante passou a ser de ordem ética e moral, citando inclusive a própria Palavra de Deus que, segundo eles, só é usada para manipular os incautos, a Universal do Reino de Deus é a vidraça da vez. De acordo com a denúncia do Ministério Público, boa parte do dinheiro recebido pela igreja era repassada em forma de “pagamentos” para empresas de fachada controladas por pessoas ligadas à cúpula da organização. Duas delas, a Cremo Empreendimentos e a Unimetro Empreendimentos receberam, entre 2004 e 2005, mais de 70 milhões de reais, embora não tenham oferecido nenhum serviço ou produto, segundo a Secretaria da Fazenda de São Paulo.

Essas empresas enviariam o dinheiro para outras, sediadas em paraísos fiscais. Tanto a Investholding, nas Ilhas Cayman, quanto a CableInvest, nas Ilhas do Canal, Reino Unido, também pertencem a pessoas supostamente ligadas à igreja. Por fim, o dinheiro retornava ao país como empréstimos para os líderes eclesiásticos, que compravam com eles apartamentos em condomínios de luxo nos Estados Unidos e propriedades no Brasil, como uma mansão de 2 mil metros quadrados em Campos do Jordão (SP), no valor de 6 milhões de reais.

A denúncia do Gaeco não é propriamente uma novidade. Desde 1992, quando a Universal comprou a Rede Record, houve mais de dez processos contra a igreja. Já em 1995, depois que Macedo apareceu em um vídeo ensinando pastores a tirar ofertas, autoridades fazem varreduras nas contas da organização, mas não conseguem provas. “A tese de que pastores tenham pegado dinheiro de ofertas, mandado para o exterior e financiado recursos para enriquecer, não é nova. Em 1993, houve denúncia apócrifa e, de lá para cá, a Polícia Federal, a Interpol, o FBI, a Receita Federal e, finalmente, o Supremo Tribunal Federal concluíram que as denúncias não tinham fundamento e inocentaram os acusados. Também essa denúncia não será aceita, pois trata-se de calúnia, injúria e infâmia”, afirmou em pronunciamento o senador Marcello Crivela (PRB/RJ), bispo licenciado da igreja. A principal reclamação de Crivella e da Universal é que alguns dos maiores veículos da mídia nacional estejam aproveitando a investigação do Ministério Público para criar um factóide e, com isso, lutar contra o crescimento de audiência da TV Record. Dentre aqueles que deram mais publicidade ao caso estão o jornal Folha de S. Paulo, que há dois anos enfrentou uma enxurrada de processos judiciais movidos por fiéis da igreja por conta de uma reportagem sobre as finanças da denominação, e a Rede Globo, principal interessada na guerra de audiência. Mas se a motivação é questionável, os veículos garantem que as acusações procedem. Apesar das afirmações de independência da emissora, somente no ano passado a Universal teria repassado 400 milhões de reais para a Record. O valor entra com a compra de horários nas madrugadas, o que é perfeitamente legal. O problema é que enquanto a Globo fatura 50 mil reais, com 6 pontos no ibope, a Record, com audiência bem menor, cerca de 1,4 ponto, recebe mais de 200 mil por hora. Tudo da igreja, tudo bem acima dos valores de mercado.

Evangelho da prosperidade – Assim como a Record, com suas 23 emissoras de TV, 42 emissoras de rádio e várias outras empresas, a Universal também é seu modo uma potência. Em 32 anos, a igreja tornou-se a terceira maior denominação no Brasil, atrás apenas da Igreja Católica e da Assembléia de Deus. Afirma congregar 8 milhões de pessoas em seus 4500 templos espalhados pelo país. Além daqui, está presente em outras 171 nações e tem em seu corpo ministerial 9600 pastores e outros 4400 obreiros voluntários. Seu trabalho social e espiritual é digno de nota, uma vez que oferece a Palavra de Deus e mensagens de encorajamento para gente de todas as origens e classes econômicas, sendo uma porta de entrada para o Evangelho e para a libertação de multidões afundadas em vícios, criminalidade e falta de perspectivas na vida. É perfeitamente coerente e razoável que, como qualquer outra igreja – inclusive a Católica – ou religião, possa empregar os meios de comunicação, recursos e estrutura na tarefa evangelística. Mas a verdade é que o centro da crise não está aí e também não se restringe somente à Universal.

O espantoso crescimento evangélico nas últimas décadas já provoca uma crise de valores e de doutrinas em várias igrejas. O novo crente adotou regras menos rígidas e passou a procurar a religião não apenas como forma de obter benesses na eternidade, mas alcançar a prosperidade aqui e agora. E nada representa mais esse novo momento do que a Teologia da Prosperidade. Surgida por volta de 1940, nos Estados Unidos, ela radicaliza o ensino de que o sacrifício de Cristo deu àqueles que o seguem direito a uma saúde perfeita, riquezas materiais, triunfo sobre o Diabo e vitória sobre todo e qualquer sofrimento (conheça mais essa história na reportagem Teologia do Abracadra à página 47). Basta decretar ou determinar e colocar a fé em ação. “Para bancar suas ambições institucionais, proselitistas e econômicas, as igrejas atrelam a doação financeira à retribuição divina de bênçãos materiais. Cada culto procura convencer o fiel a firmar relações de troca com o Criador e comprovar a fé dando dinheiro. Quando a Universal começou a usar tais métodos, eles pareceram polêmicos e heterodoxos, mas agora os líderes de outras denominações perceberam a eficiência dessas práticas e, para adquirir vantagens competitivas, copiam todas elas”, explica o sociólogo Ricardo Mariano, da PUC do Rio Grande do Sul, autor do livro Neopentecostais (Edições Loyola).

Copiar não é força de expressão nem se resume à nova visão em relação ao dinheiro. Depois do sucesso da Fogueira Santa de Israel, do Vale do Sal e das rosas ungidas, fazer campanhas passou a ser algo praticamente obrigatório em todo meio neopentecostal e em parte do pentecostalismo clássico. Diante da renovada pressão por exposição midiática e crescimento, algumas igrejas históricas que adotaram a renovação carismática passam a rever a forma e o conteúdo de suas mensagens e deixam em polvorosa os mais tradicionais. Como tantos outros modismos, substituem a ênfase na santidade e no relacionamento com Deus pelo emocionalismo desprovido de mudança de vida e baseado na política do “toma lá, dá cá”.

“Estamos vivendo uma espécie de ‘síndrome de Éfeso’. Como no caso dos crentes que viviam naquela cidade nos tempos bíblicos, as pessoas correm atrás de novidades. Por outro lado, passou a ser inconveniente e fora de propósito falar em ‘sofrer por amor ao Evangelho’, ‘entregar tudo a Deus’ e ‘buscar em primeiro lugar os valores do Reino’. O único sacrifício válido é o financeiro. Infelizmente, pouco há em comum entre essas novas igrejas e a Reforma Protestante que deu origem aos movimento evangélico”, lembra o professor Lourenço Stelio Rega, diretor da Faculdade Teológica de São Paulo e especialista em Ética. Nessa nova realidade do meio religioso brasileiro, textos bíblicos tradicionais ganham novas interpretações, nas quais um Deus visto apenas como Senhor e Salvador já não atende à demanda dos fieis. Antes de mais nada, ele é um negociador e os líderes eclesiásticos, seus despachantes. Ai de quem bobear nessa tarefa: a concorrência é cada vez maior.

Um quadro vívido de como anda o movimento evangélico pode ser encontrado na periferia das grandes cidades. Nesses locais, proliferam igrejas, a maior parte congregações independentes, com templos quase vizinhos. Em São Paulo, a Avenida Celso Garcia, ´no Brás, uma das vias mais tradicionais da metrópole, passou a ser conhecida como “avenida da fé”. Em uma cidade onde um novo templo é aberto a cada dois dias, a Celso Garcia ganhou pelo menos nove novas igrejas nos últimos tempos, algumas com templos enormes e suntuosos, separados por poucos metros. E se antigamente as igrejas transformavam cinemas em lugares de culto, hoje supermercados e lanchonetes da rede Mc Donald’s são adaptados para funcionarem como templos. “É o fast food da religião. Como a concorrência é enorme, cada um tenta vender melhor seu peixe. Só falta pendurar uma faixa na entrada proclamando: ‘Esta igreja funciona. Sabemos como fazer Deus trabalhar para você’. Isso, a teologia já não explica mais. Procurar recompensa pelo menor preço é coisa para a economia clássica. Pior é que não há diferenciação: todos são vistos como evangélicos”, completa Rega.

Na ponta do lápis - Há quem veja o fenômeno do crescimento evangélico como um avivamento. Outros não aceitam tal interpretação, afinal, para um avivamento não basta o aumento quantitativo, é preciso também o qualitativo. De um jeito ou de outro, o fato é que o Brasil caminha a passos largos para se tornar em um futuro bem próximo uma nação de maioria evangélica. Percurso inverso ao da Europa, que abandonou o cristianismo e agora corre sério risco de se tornar um continente islâmico (leia matéria à página 48). Nesse exercício, não há nada de adivinhação, vontade ou futurologia. É questão de fazer cálculos. “A continuar a taxa de crescimento que os evangélicos tiveram nas últimas décadas, no final deste ano, 25,4% de um total de 196,5 milhões de brasileiros, ou seja, quase 50 milhões serão evangélicos. Já em 2020, metade da população será protestante”, observa a matemática e crente presbiteriana Eunice Stutz Zillner, do Ministério Apoio com Informação (MAI), responsável por análises e projeções no campo religioso.

Apesar da fé ser a motivação para o trabalho – ela e o marido, o engenheiro eletrônico Marcos Zillner, são missionários e pretendem que os números incomodem e estimulem as igrejas a evangelizar –, nada de ser tendencioso ou enveredar pela empolgação dos líderes denominacionais e seus números “evangelásticos”. As contas, literalmente, são feitas na ponta do lápis. As projeções do MAI têm como ponto de partida os censos periódicos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pelo levantamento de 1991, por exemplo, sabe-se que os evangélicos eram 13 milhões na época ou 8,9% da população brasileira. Nove anos depois, em 2000, os evangélicos dobraram de tamanho e passaram a ser 26,1 milhões, 15,45%. “Tudo bem que a tendência mais para frente é que esse aumento venha a se estabilizar. Mas levando em conta a taxa de crescimento anual dos evangélicos, que é mais de três vezes o da população do país, podemos dizer que hoje um em cada quatro brasileiros é protestante”, confirma Eunice. Nesse contexto, todos crescem, mesmo os históricos. Mas sobretudo as denominações neopentecostais.

Uma quantidade tão expressiva de pessoas transformadas pela Palavra de Deus leva a crer que haverá um forte impacto na sociedade brasileira, certo? Errado. Pelo menos, segundo os especialistas ouvidos pela semanal Época, a revista que fez inicialmente a projeção sobre o futuro do país. Para a antropóloga Christina Vital, do Instituto de Estudos da Religião (Iser), a flexibilidade e a adoção de regras menos rígidas é a razão do exponencial crescimento evangélico. “Enquanto os católicos não aceitam coisas como a camisinha, os evangélicos adaptam-se aos costumes da sociedade. Há igrejas que aceitam gays, por exemplo. Essa tendência deve continuar”, prevê ela.

A potencialidade numérica também não garantirá que um presidente evangélico seja eleito, já que tradicionalmente a representação política no Congresso fica bem aquém da porcentagem de crentes na população. O Brasil também será muito diferente dos Estados Unidos, onde a moral conservadora é parte essencial da crença e do culto. “A religião foi abrasileirada. Não tem um foco tão grande no moralismo”, analisa o antropólogo Ari Pedro Oro, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Continuando, os especialistas acreditam que o aumento da população protestante levará ainda à diminuição do consumo de álcool, com a oposição costumeira dos crentes, e ao aumento da escolaridade, já que as crianças são incentivadas a ler a Bíblia. Com relação à violência, continuará havendo tolerância e o motivo para se acreditar nisso está nas favelas do Rio de Janeiro, onde pastores e traficantes convivem bem. Há respeito para com os religiosos e os bandidos atendem apelos eventuais. Mas o tráfico permanece.

Visto com esperança por uns, o panorama causa desconfiança e provoca arrepios em outros. Especialmente em que acredita na máxima bíblica de que o crente “não pode se conformar ao mundo, mas deve transformá-lo pela fé” e que defende os valores expressos na Palavra de Deus sem restrições. “A Igreja evangélica desprovida da ética cristã não consegue impactar a sociedade. Aliás, não precisamos esperar o futuro para ver o que acontecerá. Podemos observar hoje. Décadas atrás, falávamos em católicos nominais. Agora, já temos os evangélicos nominais, aqueles que frequentam os cultos apenas atrás de bênçãos. Sem querer generalizar, mas vivemos uma crise de conversões no Brasil, já que vemos quase somente adesões”, alerta o pastor e pesquisador Paulo Romeiro, da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo.

Para ele, aqueles que usam a mídia para anunciar uma mensagem de salvação são raros e a situação só mudará caso esses líderes mais éticos tenham maior visibilidade. “A justiça, em todos os seus sentidos, não é mais preocupação de grande parte da Igreja cristã. Em parte, isso ocorre porque não há uma estrutura de poder que coíba abusos e manipulação de um líder carismático que manda sozinho lá no topo, coisa muito comum nessas denominações que mais crescem. Está na hora do trigo aparecer, para que a sociedade veja a diferença.”

Preocupação semelhante tem o também pastor e jornalista Silas Daniel. Nos últimos meses, o jornal do qual ele é o editor, o Mensageiro da Paz, órgão oficial de comunicação das Assembleias de Deus no Brasil, publicou uma série de matérias sobre o Brasil evangélico em 2020 e perguntou a algumas das principais lideranças assembleianas se ainda é possível mudar tal quadro. A resposta é sim, mas o tempo está cada vez mais curto. “Apesar das denominações neopentecostais terem mais visibilidade, por causa da mídia, o crescimento evangélico também atinge as organizações históricas e pentecostais. Essas precisam resgatar a mensagem sobre santidade, renúncia e humildade no lugar da auto-ajuda e dos discursos feitos para massagear o ego que tomaram de assalto os púlpitos. Só com ênfase renovada na exposição sadia da Palavra de Deus e na oração, culto após culto, poderemos virar o jogo”, adverte. Se o futuro não for assim, a velha figura do evangélico com a Bíblia debaixo do braço será mesmo coisa do passado.

Marcos Stefano
Jornalista da revista Eclésia

Fonte: http://www.eclesia.com.br/revistadet1.asp?cod_artigos=1138