AS MULHERES ESTEJAM CALADAS
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João Pedro Gonçalves Araújo*
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(Texto
divulgado a propósito da decisão sobre filiação de pastoras na OPBB-DF. O texto
é longo, mas vale a pena ser lido. Publicado na revista Fragmentos da Cultura)
RESUMO
Proibidas de falar nas reuniões
públicas em suas igrejas batistas no século dezenove no Brasil, a presença
feminina na igreja, suas demandas e reivindicações acabaram forçando que o
grupo revisasse suas próprias decisões e pontos de vista sobre o silêncio
feminino aqui instituído. Como parte do protestantismo puritano, os batistas
nas novas terras das Américas herdaram práticas europeias de distinção,
isolamento e interdição sobre a mulher praticada em suas terras. Em virtude do
auto entendimento de um povo chamado, se lançaram à tarefa de levar suas
crenças a todos os povos. Naturalmente que essas crenças estavam baseadas em
pressupostos históricos que seus pais herdaram de sociedades civis e
religiosas. Dentre essas práticas incluem-se os interditos e tabuizações sobre
os candidatos a membros de suas igrejas, e, de forma ainda mais acintosa,
sobre a mulher, seus passos, crenças e sentimentos. Mas como silenciar
está muito além do ignorar, o artigo examina e expõe mais particularmente as
pressões e impressões que diferentes pessoas tinham e mantinham dentro da
comunidade. Impor silêncio é mais que anular ou ignorar a presença da mulher.
É, antes de tudo, o reconhecimento da presença e de uma possível força que
surgia dentro do grupo. Além disso, representa uma tentativa de resolver o
problema que já não se podia fazer de conta que não existia, ou seja, responder
às indagações as mulheres que queriam falar e daqueles que defendiam que elas
falassem na igreja. Sendo praticamente maioria no grupo, as mulheres precisavam
ser visitadas, tarefa que exigia a criação de uma comissão de visitadoras e o
consequente relatório da visita feita. Para tais visitas, o marido indicava a
sua mulher, e, ao voltar, relatava ao marido o resultado da visita. Na reunião
da igreja, o marido relatava o que a sua mulher havia dito em particular para
ele, em casa. O artigo também mostra que o homem-marido, ao indicar sua esposa,
assume a voz de mando, mas, ao dar relatório da atividade feminina, assume o
lugar e funções do feminino na comunidade.
Palavras-chave: mulher,
batista, indicação, silêncio, dominação.
Introdução:
Não é novidade que as religiões,
salvo algumas exceções, tendem a tratar as mulheres com reservas ou até mesmo
deixá-las alijadas das suas cerimônias. Mesmo uma religião que se propõe libertadora,
como o cristianismo, tem atitudes misóginas, excludentes e tabuizadoras quando
o assunto é mulher. Talvez por citar versos da Bíblia como corroboradores de
suas atitudes, o tratamento que o cristianismo dá para as mulheres seja ainda
dominador.
Protestantes e católicos, a
despeito da sua propalada diferença, têm mostrado atitudes semelhantes de
afastamento das mulheres de suas reuniões, participação em ministérios ou
igualdade nos direitos com relação aos homens. Elas já foram proibidas de
cantar durante as celebrações, colocadas em salas separadas dos homens na hora
dos serviços religiosos, já lhes foram destinadas uma ala só para elas, e,
somente no século XIX a mulher pôde orar em voz alta em uma reunião das igrejas
protestantes.
Buscar as possíveis origens de
tais práticas pode tornar-se uma atividade didática para os tempos atuais.
Reconstituir e reconstruir a história dos alijamentos e tabuizações da mulher
nas reuniões e ministérios da igreja cristã pode ajudar a entender as práticas
atuais nas suas diversas igrejas e divisões. Entender ou reivindicar que tais
práticas têm bases bíblicas pode parecer uma boa justificativa e até ter o
charme de uma interpretação ortodoxa, mas a base bíblica ainda não é um caminho
seguro. Primeiro, as diversas crenças dos crentes são determinadas mais
histórica e socialmente que através da Bíblia. Na verdade, as práticas no meio
da cristandade são construídas a partir de circunstâncias históricas e só
depois se procuram versos da Bíblia na busca de justificar tais práticas.
Ao longo da história os cristãos
acharam muitos versículos que fundamentaram a matança dos habitantes no
continente americano. Inúmeros versículos também serviram para a justificação
da escravidão dos negros na África. Usando a mesma Bíblia, os protestantes já
foram contra o divórcio; depois se tornaram a favor. Muitos conhecem, em
virtude disso, as calorosas discussões e os anátemas recíprocos entre
cientistas e religiosos quando aqueles, em virtude do crescimento do
conhecimento humano, faziam novas descobertas, experimentos ou teorizavam
acerca de um saber. A centralidade da terra no universo, sua quadratura e a
hierarquização em sentido descendente das criaturas logo se chocaram com o
heliocentrismo, a forma esférica e a teoria darwiniana são exemplos suficientes
para demonstrar o que venho afirmando.
O que o cristianismo faz no
geral, seus milhares de vertentes o fazem no particular. Para exemplificar,
tomemos um ramo cristão, desenvolvido no calor do iluminismo europeu, os
batistas. Quando os adeptos desse grupo davam bastante ênfase na direção
interior do Espírito Santo na vida do indivíduo, chegaram mesmo a negar àqueles
que tinham estudado teologia a oportunidade de pregar em suas igrejas. Naquele
tempo – século XVII – a pregação deveria ser feita por qualquer pessoa que
trabalhasse durante o dia e não que passasse as horas de trabalho em um
escritório da igreja ou em sala de aula de uma instituição teológica. Não
satisfeitos com isso, ainda proibiam que o pregador leigo fosse para o púlpito
portando uma Bíblia. Segundo acreditavam, Deus tinha que dar toda a orientação,
desde o texto bíblico totalmente decorado até a entrega da mensagem, que
deveria ser pregada de forma totalmente espontânea.
[…] a seita atribuía o poder disciplinador
predominantemente às mãos dos leigos. Nenhuma autoridade espiritual podia
assumir a responsabilidade conjunta da comunidade perante Deus. A influência
dos anciãos leigos era muito grande até mesmo entre os presbiterianos […] os
batistas lutaram contra o domínio da congregação pelos teólogos […] O domínio
dos leigos, em parte, encontrou expressão numa oposição a qualquer teólogo e
pregador profissional. Somente o carisma, e não o treinamento ou o cargo
deveria ser reconhecido**,
(WEBER, 2008, p. 222).
Essa denominação, aliás, quando
ainda pequenos e perseguidos na Europa, exigiam que um candidato a membro fosse
convertido, adulto e que não fizesse parte de qualquer esfera da burocracia
governamental, dada a ojeriza que nutriam a qualquer forma de poder. A rejeição
a toda forma de poder fez com que acreditassem numa democracia e igualitarismo
radicais. Deus era o único que teria poder sobre a igreja. O líder obedecia à
voz de Deus sentida ou compreendida pelo povo. A voz povo, então, era a voz de
Deus. Quanto à administração de suas igrejas, dirigiam seus negócios por um
sistema que se aproximava do presbiterianismo. Com respeito à salvação,
oscilavam em duas posições: os batistas gerais e os particulares. Aqueles
acreditavam a morte de Cristo teria sido por todos os homens; estes, afirmavam
que ele tinha morrido apenas pelos eleitos. O mesmo grupo, se é que ainda
podemos considerá-los um grupo apenas, divergiam quanto à forma de batismo
atual, pois eram aspersionistas.
Somente com a travessia do
Atlântico a partir do século XVI que algumas de suas doutrinas como são
conhecidas no início do século XVI se tornaram hegemônicas. O aspersionismo
perdeu força e o imersionismo se estabeleceu definitivamente como uma de suas
marcas mais distintivas. Os batistas gerais se tornaram mais populares que os
da ala calvinista (particulares); do sistema presbiteriano de governo, passaram
para a forma atual do congregacionalismo. Mudaram também suas crenças quanto à
natureza e o instrumento da pregação. O leigo perdeu espaço para o homem bem
letrado, estudioso das Escrituras, o teólogo com tendências intelectuais e de
classe média. Sem teologia é impossível pastorear.
Para todas essas práticas, tanto
as atuais, quanto às suas contrárias que foram abandonadas, reformuladas ou
substituídas, havia uma infinidade de versículos-prova que as justificavam e
conferiam um ar de serenidade, seriedade, infalibilidade e eternidade.
Provavelmente nos mesmos períodos históricos outras denominações afirmassem
outras doutrinas com praticamente o mesmo número de citações bíblicas. De igual
mesmo entre as diferentes denominações, só a auto reivindicação de que o seu
grupo é o mais certo, o mais ortodoxo e o mais fiel intérprete das Escrituras.
Não à toa os sociólogos da religião consagraram o termo seita para essas
igrejas que insistem a afirmar que, a despeito de tantas outras denominações e
crenças, a sua é a única denominação fiel e digna de confiança no uso, ensino e
citação das Escrituras.
Pra. Maria Valda em Ijuí - RS. |
O Fim do Livre Arbítrio
Quando os missionários
norte-americanos vieram para o Brasil trazendo sua mensagem, trouxeram também
algumas práticas que se perpetuaram nas igrejas brasileiras. Alheios às
questões transitórias e históricas das doutrinas bíblicas vistas em suas
terras, acabaram por praticar e ensinar aqui exatamente as práticas que
aprenderam lá. Uma dessas, a proibição do uso da voz pela mulher na congregação
merece uma reflexão mais aprofundada. É o que nos propomos a fazer aqui.
É preciso entender, porém, que o
silêncio da mulher está dentro de um contexto maior. Logo, antes que examinemos
essa doutrina particularmente, precisamos analisar rápida e superficialmente as
práticas missionárias da aceitação de uma pessoa na igreja, independentemente
de ser homem ou mulher. A partir do livro de Atas de uma das primeiras igrejas
batistas do Brasil, a de Salvador, 1882, constatamos que o ingresso de qualquer
no grupo era precedido de um exame rigoroso. O candidato a membro precisava
mostrar diversas qualidades morais que o qualificasse como bom candidato.
Lembro, novamente, que essas
práticas, ainda que respaldadas por diversos textos escriturísticos, tinham,
antes, um fundo histórico e cultural. Quem nos ajuda a perceber tais
procedimentos como históricos é Max Weber. Durante os meses passados nos
Estados Unidos em 1905, esse autor percebeu os rigores que as igrejas
norte-americanas tinham para a aceitação de uma pessoa nas diversas
denominações daquele país. Ele notou que a membresia estava diretamente ligada
a aspectos sociais e propagandísticos. Um bom membro era a melhor propaganda da
igreja diante da sociedade.
As seitas […] uniram os homens através da seleção e
criação de companheiros crentes eticamente qualificados […] A seita
controlava e regulamentava a conduta dos membros exclusivamente no
sentido da probidade formal e do ascetismo metódico […] o sucesso
capitalista de um irmão de seita, se conseguido legalmente, era prova de seu
valor e de seu estado de graça, e aumentava o prestígio e as possibilidades de
propaganda da seita (WEBER, 2008, p. 225).
Logo, cuidar que cada filiado ou
candidato à filiação a uma igreja tivesse uma vida digna é essencial para o
respeito da seita e para a manutenção do status que o grupo tinha adquirido
naquela sociedade. Vem daí os rigores no exame e vigilância de cada candidata a
membro de uma igreja. Se era necessário mostrar altas qualidades para a
filiação, maiores rigores eram exigidos depois de aceito.
O membro da seita precisava ter qualidades para
ingressar no círculo da comunidade. […] Para manter sua posição nesse círculo,
o membro tinha de provar repetidamente que era dotado dessas qualidades, que
estavam sendo, constante e continuamente, estimuladas nele. Como a sua
bem-aventurança no outro mundo, toda a sua existência social neste mundo
dependia de sua capacidade de submeter-se à prova (WEBER, 2008, p. 224).
Esses rigores eram praticados
abertamente. O candidato a membro se sujeitava a ser examinado por todos e
diante de todos em uma cerimônia pública onde qualquer membro já anteriormente
aceito poderia questionar qualquer coisa. Em uma igreja batista típica, por
exemplo,
[…] a admissão à congregação batista local só é
feita depois dos exames mais cuidadosos e das investigações detalhadas sobre a
conduta, que remontam à infância, (Conduta inconveniente? Frequência a
tavernas? Dança? Teatro? Joga cartas? Falta de pontualidade nos compromissos?
Outras frivolidades?) A congregação ainda seguia rigorosamente a tradição
religiosa (WEBER, 2008, p. 214).
Analisar o contexto da filiação
batista é revelador, pois esse grupo se considera um dos pais da luta e
conquista pela liberdade do indivíduo diante do Estado e da Igreja. Esse grupo
entende que o homem nasceu livre e que essa liberdade é um dom divino,
inalienável. Essa ideia é uma proposta útil e utilitária para o cristianismo. É
necessário que haja liberdade de expressão e de crença para que os pregadores
cristãos desempenhem suas funções. Em um Estado centralizador, ou onde vigore
os rigores de uma religião hegemônica o sucesso do cristianismo fica
comprometido. Para conseguir seus intentos, os cristãos precisam lutar ou
sabotar o sistema vigente para poder ser disseminado. Pregar, portanto, supõe
algumas condições básicas: liberdade religiosa, liberdade de expressão
individual e alguma intelectualidade para entender a mensagem cristã. Foi em
virtude disso que o protestantismo em geral sempre lutou pelas liberdades
individuais e a separação da Igreja do Estado. O homem é livre e soberano para
escolher, segundo afirmam. Daí também entender-se que o protestantismo e o
liberalismo são dois lados de uma mesma moeda.
O patrulhamento congregacional
chega mesmo a determinar a intelectualidade do sujeito. O protestantismo teve
no livre exame das Escrituras e no sacerdócio de cada crente um dos principais
lemas em contraposição ao catolicismo. O homem, livre que era também tinha o
direito de possuir sua própria Bíblia, lê-la e interpretá-la de acordo com os
cânones da razão. Sendo sacerdote de si mesmo, não precisava de instâncias
reguladoras ou interpretativas das Escrituras. Ele era um livre pensador.
Dentro da igreja, porém, ele aprenderá que não é mais tão livre quanto lhe
disseram. Logo ele concluirá que o conhecimento bíblico não é imediato, mas
mediatizado pela interpretação oficial e oficializante da igreja. Ele saberá o
que deverá saber. Se se lembrar, notará íntimas afinidades com o catolicismo
que reivindicava ser a Igreja a única a ter uma interpretação correta da Bíblia.
O catolicismo ao menos tinha uma única interpretação vinda do papa. O
protestante terá tantas interpretações quantas forem suas muitas igrejas. Pior,
cada uma afirmará sua posição contra a posição das outras.
O indivíduo, uma vez aceito,
terá comprometido a sua liberdade individual. No contexto da igreja, membresia
e livre arbítrio são incompatíveis. Teixeira captou muito bem essa relação
quando assim se expressou: “o uso da liberdade individual perante Deus só é
possível se o homem não pertence à Igreja. Fora dela, o homem pode aceitar ou
não a salvação [...] Dentro dela, só lhe resta um caminho: o de anular-se para
que seja possível sua total submissão à instituição” (TEIXEIRA, 1975, p. 189).
Aparentemente demasiada a afirmação de Teixeira, contudo, sabendo-se dos
procedimentos da igreja em relação àqueles que foram aceitos, vê-se que o rigor
aumentava. Tornar-se membro poderia significar muitas coisas, principalmente,
ser vigiado. Peter Berger (1977, p. 193) escreveu que as “instituições
[...] reservam-se o direito de não só ferirem o indivíduo que as viola, mais
ainda o de repreendê-lo no terreno da moral [...] Geralmente exprime-se num
estímulo bastante eficiente, representado pela sensação de vergonha e, por
vezes, de culpa, que se apossa do infrator”.
Algumas práticas da igreja
fundada em Salvador e por mim estudada demonstram algum tipo de vigilância: a
chamada nominal dos membros para as suas reuniões – principalmente as de
negócios, e exigência de justificação em caso de ausência. No caso dos
faltosos, a igreja nomeava uma comissão para visitação desses faltosos. Outra
medida: tomada de endereço de todos os membros para se manter o fiel sob os
olhares da liderança. Em 03 de janeiro de 1884 (Ata 17ª, 8ª Sessão ordinária)
foi decidido na igreja em Salvador “[...] tomar o nome da rua e numero da casa
e nome dos membros para serem chamados nas secções ordinárias, e deve dar cada
um noticia de si, ao menos uma vez por mês”. Três meses depois, 07 de abril de
1884 a igreja reconheceu a dificuldade da presença daqueles que moravam longe
do local do culto. A visita implicava também em trazer um relatório para a
igreja do que foi feito, conversado e o resultado: “[...] A comissão
encarregada de ir ao irmão Pacífico Alves do Ó, apresentou motivos justos de
desobediência pessoal d'este para com a Igreja [...]” (PIBB Ata 111ª, 42ª seção
ordinária, 06/09/1886). Os casos de faltas poderiam ser julgados como
negligência, como aconteceu em 02 de maio de 1887 (Ata 127ª, 50ª Sessão ordinária),
fato que justificou a criação de uma comissão de visitar a tal de Diomedes.
Pensar ou agir de forma diferente do esperado era considerado desobediência e
heresia, casos punidos com a exclusão: “[...] Foi cortado da Igreja o irmão
Pedro do Ó, por heresias e rejeição da autoridade da Igreja, (Ata 156ª - 65ª
secção ordinária, 02/01/1888)”.
O Rigor do Exame
Os registros deixados nas Atas
da igreja de Salvador são elucidativos. Ali, os candidatos a membros são
descritos como tendo sido ouvidos, examinados minuciosamente, cuidadosamente
investigados, passado pelos exames necessários, perguntados, inquiridos.
Algumas atitudes comportamentais poderiam ser proibitivas a que alguém se
tornasse membro. Dentre as principais práticas desqualificadoras estavam:
fumar, beber, comerciar bebidas alcoólicas, profanar o dia do domingo -
trabalhar ou vender nesse dia -, praticar a mendicância. Ser menor de idade
necessitava de autorização dos pais ou responsáveis.
Para convencer a congregação, o
candidato precisava ser claro, estar convicto de sua nova posição religiosa,
ter o poder de convencimento. Era a congregação que julgava satisfatório ou
insatisfatório o depoimento. Mediante o julgamento, alguém propunha a aceitação
da pessoa e o restante da igreja votava pelo sim ou pelo não. Os casos que
suscitavam dúvidas ou afrontasse a moral do grupo poderiam ser concedido um
tempo para que o candidato resolvesse a questão ou poderiam ser rejeitados de
forma peremptória. O exemplo a seguir, retirado de Teixeira (1983, p. 151-2) é
revelador.
Quanto à sua profissão, respondeu que devido ao seu
estado físico, completamente aleijado, vive de esmolas, o que faz nos lugares
populosos, em atenção aos transeuntes que lhe estendem a mão. O irmão J. F.
fala sobre a profissão de fé do candidato dizendo que não seria contra a
aceitação do mesmo, não fosse a sua profissão que torna o evangelho muito
humilhante, e uma vez que a Igreja não poderá sustentar o candidato ou arranjar
outra profissão, vota contra a aceitação do mesmo, estando, porém a qualquer
tempo disposto a aceitá-lo caso venha a arranjar outra ocupação mais lícita
(TEIXEIRA, 1983, p. 151-2).
De todos os rigores relativos à
entrada de alguém na membresia de uma igreja batista quando o assunto envolvia
a sexualidade era ainda mais complicado. O caso de Ribas, logo abaixo, pode
revelar que ele já havia feito um pedido para ser aceito na comunidade e deve
ter recebido a orientação de deixar seu relacionamento com a mulher com quem
vivia até aquela data. Tendo deixado a relação, contudo ainda fazia suas
refeições bem como tinha suas roupas lavadas pela ex-mulher. Não foi aceito.
[...] para tratar se o irmão Ribas podia ser batizado,
consentindo em vir comer na casa da sua ex amasia e esta continuando a tomar
conta por algum tempo da limpeza ou asseio de sua roupa [...] a igreja achou
conveniente ele não ser batizado agora, pelo que um irmão fez moção n'este
sentido a qual depois de favorecida foi aprovada contra 4 votos (PIBB, Ata 234,
Sessão extraordinária 137, 20/09/1892).
Se para ser membro era
necessário estar afastado de um relacionamento conjugal não aceito pela moral
da comunidade, ser membro da igreja e começar esse tipo de relacionamento era
motivo de expulsão. Tal ato representava infidelidade, relacionamento ilícito,
má conduta, crime.
[…] o irmão João Batista […] falhou em termos
claros ao Sr. Simões, dizendo-lhe que retiraríamos a mão de fraternidade se ele
não justificasse o seu procedimento com a Igreja, e deixasse a mulher com quem
vivia ilicitamente […] Moção para expulsar o Sr. Simões da Comunhão da Igreja
por causa da sua infidelidade […] viemos a passar da má conduta do errante
irmão cheio de crimes e falsidades […] votar a expulsão justa do dito Simões
[…] votaram todos para que ele fosse expulso, exceto um, (PIBB, Ata 34ª, 13ª
Seção ordinária, 07/06/1884).
A questão sexual e o
protestantismo no Brasil tiveram contornos históricos interessantes. Em parte,
os rigores dos missionários sobre a sexualidade e a pertença à membresia de
suas igrejas podem ser entendidos, além das restrições religiosas que trouxeram
de suas terras, pelos impedimentos da legislação em vigor no Brasil. Somente em
1861 é que o Império decretou que os ministros acatólicos – daqueles ramos
religiosos já considerados tolerados – podiam se habilitar para fazer
casamentos com direitos civis. Os Decretos 1.144 de 11 de setembro de 1861 e
3.069 de 17 de abril de 1863 estão entre as primeiras legislações sobre o casamento
de religiosos não católicos. O Decreto 1.144 tornava extensivo o efeito civil
dos casamentos celebrados de acordo com as leis do Império àqueles que
professoravam uma religião diferente do Estado. O Decreto 3.069, a partir dos
Artigos 52, além de regular os casamentos acatólicos, também regulava os
nascimentos e óbitos de protestantes e outros acatólicos. Ainda assim, algumas
autoridades desconheciam ou ignoravam tais Decretos. Um exemplo disso aconteceu
em Recife em 1873, quando um subdelegado proibiu uma reunião de protestantes da
Igreja Congregacional acusando-os de terem cometido o pecado de prostituição em
virtude da realização de um casamento pelo pastor Robert Kalley. Joyce
Every-Clayton (2004, p. 458) escreve que o dito subdelegado “nada sabia da lei
do Império que autoriza o casamento acatólico”, e, por desconhecer o Decreto
“não quis saber ou acreditar” quando os fiéis lhe narraram que podiam realizar
o casamento baseados em lei.
Diversos foram os casos em que
um candidato a membro teve que esperar até que sua situação matrimonial fosse
resolvida, como foi com a senhora Maria Palmira Gallo. Ter fé e saber
expressar-se com desenvoltura, convencer as pessoas da sua conversão ficava em
segundo plano quando o assunto casamento não estava ainda resolvido. Sabemos
que quando um ato é condição para a realização de outro, aquele é mais
importante que o segundo. Dessa forma, o casamento se tornou mais importante
que o batismo.
A convite do irmão moderador e pastor Taylor,
reuniram-se a igreja em sessão extraordinária [...] foi apresentada a Senhora.
Maria Palmira Perª Gallo [...] a qual mostrou exuberantemente a sua fé [...]
mas não foi recebida para o batismo por morar ainda na casa do seu ex-amasio,
e como pretende casar-se com ele, a igreja aguarda o seu batismo até que se efetue
o seu casamento […] (PIBB Ata 242, Sessão extraordinária 142,
13/12/1892).
Outro exemplo, em 03 de setembro
de 1885, Maria Magdalena dos Santos pediu o batismo. Ainda que tenha sido
aprovada pelo voto da Igreja, a cerimônia foi adiada sob condição de terminar
seu relacionamento que mantinha até então. Dois meses depois ela foi batizada.
Em outras palavras, a separação cancelava automaticamente a proibição: “[…]
para ouvir […] D. Maria Magdalena Dos Santos […] foi recebida, isto é, ficando
adiado o recebimento para o dia que terminasse o seu casamento, ser batizada
[…] foi batizada […] no dia 5 de Novembro de 1885”, (PIBB, Ata 79ª, 52ª Seção
extraordinária). Mais esclarecedor ainda é o exemplo de Maria Magdalena Bastos
(PIBB, Ata 232, Sessão extraordinária 135, 06/09/1892). Ela havia pedido o
batismo a primeira vez e fora recusada. A igreja fez algumas exigências que ela
deveria cumprir – resolução de sua situação marital. Tendo cumprido com as exigências,
já não deveria ter impedimentos. Morando com o seu segundo marido, teve que
deixá-lo por recomendação da igreja, porém, quando pediu pela segunda vez seu
batismo, tornou ser recusada.
[...] se devia ou não ser de novo ainda a irmã
Maria Magdalena Bastos. Discutiu-se bastante sobre este assumpto, sendo quase
toda a igreja de parecer que a dita irmã fosse unida em virtude de ela ter
vindo arrependida, confessando que a sua segunda união nupcial não estava ou
não é autorizada pela Palavra de Deus e que ela conhecendo isto deixou o seu
suposto marido; porém o irmão Salomão pastor da igreja [...] não concordou com
a união da referida irmã, pelo que convidando ao irmão Jorge para tomar assento
na cadeira de moderador, fez moção para ela não ser aceita em vista de se achar
gravida em consequência dessa falsa união; a qual moção depois de favorecida
foi aprovada.
Um procedimento que se tornou
usual foi realizar, casamento e batismo no mesmo dia. Em 1884 o batismo de
Dorea e Heduviges foi precedido pela cerimônia de casamento dos dois.
As 8 ½ horas da noite do dia 9 de agosto do ano
corrente […] para ouvir e atender a petição dos candidatos – sr. Dorea e sua Sra.
Heduviges […] em 1º lugar foi ouvido o sr. Dorea […] foi o dito Snr. Recebido
para batismo […] Em 2º a Sra. Heduviges […] foi recebida unanimemente […] Concluídos
estes trabalhos, o irmão Taylor levantou uma moção para ser inserido na acta
d'esta secção um voto de agradecimento e reconhecimento ao sr. Dr. Freitas,
pelo modo digno e louvável com que se portou depois do ato do casamento dos
irmãos acima mencionados […] irmão Dórea e sua Sr.ª foram batizados na
mesma noite (Ata 40ª, 28ª Seção extraordinária, 09/08/1884).
Sete meses depois do casamento
de Dorea e Heduviges, Justina e José Cardoso tiveram seu ingresso e batismo
adiados até que resolvessem a questão do casamento: “[…] Sra. Justina Francisca
do Nascimento […] foi recebida […] Em seguida apresentou-se o Sr. José Cardoso
Leão […] foi recebido […] Havendo emenda, para ser adiada a recepção do
casamento […] foram batizados no mesmo dia […] (Ata 67ª - 48ª Seção
extraordinária, 22/03/1885).
Pelo relato a seguir,
depreende-se que Daniel Vieira e Anna Maria da Graça foram batizados no mesmo
dia em que o pastor Salomão Ginsburg os casou. Primeiro, porém, o casamento,
depois, o batismo: “Foram casados religiosamente pelo pastor Salomão os
candidatos ao batismo Daniel Vieira da Silva e Anna Maria da Graça e nesta ocasião
foi feita uma moção para a Igreja ser sempre consultada sobre qualquer casamento
celebrado pelo pastor desta Igreja, sendo aprovada (PIBB Ata 228, Sessão
ordinária 98, 08/08/1892)”. José Clodoaldo teve que mostrar um documento de
registro de casamento civil realizado no dia anterior para poder ter o seu
batismo efetuado:
Depois do culto da manhã […]
para ouvir-se José Clodoaldo de Souza […] foram feitas moções para serem os
ditos candidatos recebidos […] Foi reconhecido, pela Igreja em seguida o
casamento do candidato José Clodoaldo de Souza com a senhora D. Cândida das
Virgens Leite, o qual teve lugar pelo civil no dia anterior, (PIBB, Ata 258,
Sessão extraordinária 154, 28/05/1893).
A QUESTÃO DO RIGOR QUANTO À
MULHER
Já vimos de uma forma geral, os
rigores que a igreja fazia para a aceitação de qualquer pessoa entre seus
membros. Estavam sob interdição: comerciantes, homens, mendigos, pessoas que
moravam longe e aqueles que se afastavam. No entanto, nenhuma forma de rigor se
aproximou ao procedimento que a igreja tinha para com as mulheres. Tal fato
merece um tratamento especial e é o que nos propomos a fazer agora.
Desde 09 de outubro de 1883,
praticamente um ano depois de ter sido fundada a igreja batista em Salvador,
ali se decidiu que as mulheres não podiam falar na igreja. Para remediar a
questão do silêncio feminino, a igreja criou outra reunião, com cunho social,
em outro dia que não era habitual para seus cultos onde elas podiam falar.
Parece que a santidade do culto é incompatível com a voz feminina.
Houve uma moção para que se reunissem os irmãos e
se unissem em oração cada 3ª feira [“...] tendo sido aprovado por unanimidade
de votos, como clausula de não ser como reunião da Igreja, mas como membros
reunidos, onde as irmãs podem falar”. “Foi interrogado por um irmão, porque as irmãs
não podiam falar nas secções? O Senhor Moderador declarou que na ata
antecedente já tem uma reunião especial onde as Sras. podem falar. Foi adiado
este assumpto para outra seção e submetido a consideração de todos os irmãos
(PIBB, Ata 10ª, 6ª Sessão extraordinária).
Há um problema no registro de
Ata acima, pois que não se conhece qualquer decisão que já tenha sido tomado
onde as mulheres poderiam falar. Além disso, o adiamento da discussão do
assunto com a promessa para outra sessão não foi cumprida até alguns anos
depois. O uso da voz é privilégio apenas dos homens. As mulheres são
compensadas com o silêncio. Pergunta-se, então, como seriam resolvidas questões
relativas a certas demandas femininas, faltas aos cultos e coisas assim. Em
tais casos, outra mulher seria designada para visitar a mulher faltante. Foi
assim que a senhora Bagby foi encarregada a fazer uma visita à senhora Emília
Maria: “tendo comprido seu dever a irmã da comissão para procurar a irmã Emília
Maria, a Sra. Bagby, foi desencarregada da dita” (PIBB, Ata 18ª, 9ª Sessão
ordinária, 03/01/1884). Essa prática continuou durante os anos seguintes. Em 07
de Dezembro de 1885 uma nova comissão que deveria ser formada para visitar as
faltantes. Já sabemos que elas não podiam falar, nem ao serem nomeadas, nem na
volta com a entrega do relatório. A saída, nesses casos, era o homem falar por
sua mulher e colocá-la na comissão. A mulher, pacificamente, acatava a decisão do
marido que era aprovada, naturalmente por outros homens, pela igreja:
“tratou-se da irmã Saturnina e foi nomeada uma comissão das irmãs a ela, pelo
que o irmão Antônio Marques ofereceu sua mulher, o irmão Borges a dele e o
irmão João Batista a dele” (PIBB, Ata 86ª, 33ª Sessão ordinária). Na volta, da
visita, a esposa relatava ao seu marido o que acontecera com a mulher visitada,
as conversas, as decisões e a opinião da comissão visitadora. Feito isso, o
marido vinha até a igreja e relatava o que sua esposa havia falado em
particular. O homem tinha a voz de mando, o direito da indicação para visitar.
Depois, tinha o direito de ser o porta-voz da esposa na prestação de contas, em
dar o relatório para a igreja. A mulher falava pela fala do marido. Visitar
mulher era coisa de mulher por indicação do marido. Criar a comissão, incumbir
a mulher da tarefa a ser feita, dar o relatório e propor alguma decisão à
mulher faltante mediante o relato da esposa eram tarefas masculinas.
Pastora Joyce Meyer
Em 02 de Maio de 1887 a igreja
decidiu criar comissões de mulheres com objetivos específicos de visitarem
outras mulheres: “[...] foi proposta outra comissão pelo irmão
Antônio Marques, das irmãs, para visitarem outras irmãs que
estão negligenciando o culto publico de Deos”, (PIBB, Ata 127ª, 50ª Sessão
ordinária). A longevidade do silêncio obrigatório das mulheres tomada em 1883
perdurou vários anos. Em 1889, seis anos depois, tais práticas ainda se achavam
em vigor, como se pode depreender da Ata do dia 12 de maio. O senhor Hilário
tinha oferecido a sua mulher. Aprovado o oferecimento, ela visitou a senhora
Maria Josepha. Na volta, falou ao seu marido. Ele deu o relatório e propôs a
eliminação da dita. Proposta unanimemente aprovada:
[...] a comissão composta das irmãs D. Faustina e
D. Felismina para investigarem o proceder da irmã D. Maria Josepha declarou por
intermédio do irmão Hilário, que a referida irmã não se quisera prestar de modo
leal a administração das supra citadas [...] sendo levantada a moção pelo irmão
Hilário, para ser eliminada a dita, o que foi unanimemente aprovada (PIBB, Ata
162ª, 69ª Sessão ordinária).
Importações e transplantes
O rigorismo com os membros em
geral e com as mulheres em particular não se originou no Brasil. É bom que se diga
isso para não parecer com aqueles discursos muitas vezes feitos por moralistas
protestantes em visita pelo Brasil. Na verdade, o rigor foi uma prática que o
missionário trouxe de suas terras. Por lá, a mulher também não tinha muito
liberdade na igreja. Certa liberdade de ação para a mulher era algo
recentemente adquirido. Parece que Charles Finney (1792 – 1875), por volta da
segunda década do século dezenove foi um dos primeiros a permitir a
participação da mulher orando em voz alta. A decisão foi tão escandalosa para
aquele tempo que muitos protestaram e o acusaram de semear discórdias entre a
igreja.
Depois de Finney, Moody (1837 -
1899) foi o primeiro a criar uma escola de treinamento teológico para moças.
Ele fez isso em 1879, ano em que os primeiros missionários batistas estavam
praticamente se dirigindo para o Brasil. Somente depois de Moody é que são
criadas as sociedades cristãs de moças e outras sociedades missionárias
femininas. As primeiras mudanças experimentadas quanto ao papel da mulher nas
igrejas norte-americanas ainda estavam começando a dar seus primeiros passos. É
provável que nem mesmo os primeiros missionários tivessem conhecimento dessas
novas práticas ou que com elas concordassem. Aqui, eles preferiram continuar praticando
todas as coisas que tinham visto e aprendido em suas igrejas nos Estados
Unidos.
Mas buscar nas práticas das
igrejas norte-americanas o fundamento histórico das práticas implantadas e
transplantadas nas igrejas brasileiros ainda é pouco. É possível, então, ir-se
mais longe e perguntar se essas mesmas práticas são originárias dos Estados
Unidos ou foram implantadas nas igrejas de lá pelos peregrinos vindos da Europa
da mesma forma como fizeram os missionários aqui. Raciocinar dessa forma parece
um apelo para um regresso ao infinito. Porém, é possível encontrar os germes
históricos dessas práticas na sociedade europeia. É o que passamos ver a partir
de agora. Para tanto, vamos buscar em outro autor, Habermas, fora do contexto
eclesiástico o fundamento das práticas das igrejas batistas.
A questão da mulher e o rigor
com a qual é tratada podem ser vista arqueologicamente na formação da sociedade
burguesa na Europa. Para Habermas (2000), desde o século XIII começou-se a se
desenvolver a sociedade que tomou as conformações em nosso tempo. A esse tipo
de sociedade ele chama de sociedade burguesa. Ainda que não seja objetivo do
autor tratar especificamente da mulher, ali aparecem, em forma de apontamentos,
noções sobre a vida familiar – esfera íntima da esfera privada – e a condição
da mulher.
Na sociedade burguesa ou esfera
pública burguesa as pessoas exercem um papel fictício. Na verdade, como tratado
por Habermas, à esfera pública burguesa é o local dos homens livres, que
conseguiram sua emancipação do poder estatal. Por outro lado, a sociedade de
homens livres é a sociedade de possuidores de bens, tanto materiais como
humanos. Nesse sentido, a mulher, como as coisas, passa a fazer parte dos bens
dos homens. Isso quer dizer que a sociedade ainda pode ser entendida muito
particularmente como a sociedade dos homens – do masculino. Essa sociedade
chegou aonde chegou através da luta contra as autoridades feudais e contra a
autoridade real. Para tanto, a literatura exerceu um papel importante nessa
mediação. A literatura surgiu, inicialmente, como forma de anotações e
registros que os comerciantes, recentemente saídos do sistema feudal,
precisavam fazer entre si e para si mesmos. Nessa fase pré-capitalista, era
necessário anotarem-se as trocas de mercadorias, informações e até mesmo os
lucros justos.
Foi por esse século (XIII) que
começaram a surgir às cidades que se destacavam em virtude das realizações de
feiras periódicas. Com o tempo, as cidades mais importantes passaram a ter, da
categoria de feiras periódicas, feiras permanentes e depois, mercados. Logo se
descobriu a necessidade de regulação de troca de mercadorias entre cidades, ou
melhor, dito, inaugura-se o comércio exterior. A partir de então, surgem os Estados
modernos, que acabam por servir como instâncias reguladoras entre os
comerciantes. Para exercer o seu papel regulatório, o Estado acabou por forjar
sua própria identidade: o uso da força e a cobrança de impostos. Contudo, a
literatura baseada na informação e voltada para os negócios, passou a tratar de
outros temas. Com isso, ela mesma se autonomizou, dando início aos correios,
onde a comunicação entre as pessoas passou a tratar de tudo. Tudo isso faz
parte do conjunto de mudanças experimentadas pelas cidades e as novas funções e
conformações culturais que daí resulta.
Com as diversas mudanças nas
cidades, o Estado passou a regular as ações, o comércio, a literatura, os
jornais, enfim, tudo. Surgiram, por esse tempo, as diversas sociedades – cafés,
salões e outros – onde a literatura era discutida. Essas diversas sociedades
ajudaram a que surgissem outras formas de associações e de expressão: música,
teatro, concertos, lançamentos literários, cartas etc. Para funcionar, elas
precisavam de regulações estatais, sem serem, contudo, extensão do Estado.
Funcionavam regulamentadas pelo Estado contra o próprio Estado. Tais sociedades
tinham na maçonaria a forma e origem de existência.
A esfera privada, nesse caso,
representava a reunião de pessoas privadas reunidas em um espaço público com a
proteção e regulação governamental. Na França e na Alemanha essas sociedades
procuram superar as desigualdades sociais que se vivia na vida dentro do
Estado. Fora do Estado todos eram considerados iguais, prática que talvez se
justificasse suas reuniões em segredo e com proteção legal do poder estatal.
Elas precisam de legitimidade e garantias de funcionamento. Essa igualdade
social, juntamente com a polidez do trato, o abandono da sacralidade dos temas
a serem tratados estão entre as principais características dessas sociedades.
Mesmo que essas sociedades –
teatros, salões, cafés, igrejas – fossem baseadas em certa pulverização das
desigualdades de classes, elas mantinham, porém, critérios rígidos para que
alguém delas fizesse parte, dentre as principais: ser adulto, ser aceito, saber
discutir, ter posse. Nessas reuniões discutiam de tudo, da vida privada à
economia, vida social e política. Inicialmente, a crítica se baseava nas obras
literárias. Era necessário, portanto, possuir o domínio da razão para a
participação do indivíduo. Talvez, por isso, as mulheres estavam alijadas de
tais sociedades.
Discute-se o público em público sem a onipresença
do poder público. Assim, o raciocínio nascido das obras de arte e políticas,
logo se expande também para disputas econômicas e políticas, como nos salões,
garantindo a sua inconsequência imediata. A isso também pode estar relacionado
o fato de que à sociedade dos cafés somente eram admitidos homens, enquanto que
o estilo do salão, todo rococó, era essencialmente marcado pela influência
feminina. As mulheres da sociedade londrina, abandonadas a cada noite, também
ensaiaram então uma luta enérgica, mas inútil contra a nova instituição, (HABERMAS,
2000, p. 48).
O alijamento da mulher da
sociedade burguesa, e por consequência, da sociedade dos homens pode ser
justificada através da natureza secreta de tais sociedades. Ser fechada ao
público em geral, ao governo e especialmente à mulher, pode ser uma herança
vinda de uma das mais antigas das sociedades secretas europeias, a maçonaria.
Sem se afirmar definitivamente que o silêncio da mulher na igreja protestante
seja uma herança adquirida da maçonaria, não se pode, contudo, descartar tais
ideias. Sabemos que em algumas igrejas as mulheres, quando admitidas,
sentavam-se em lugares especiais ou em separado. O silêncio, porém, lhes era
exigido.
Ainda que não se afirme
diretamente a descendência maçônica das práticas misóginas da igreja
protestante, não se pode negar-lhe pelo menos alguma influência. As igrejas
protestantes, como as demais sociedades formadas contemporaneamente à Reforma,
tinham seus rituais para participação de seus frequentadores: ser adulto, não
participar em qualquer esfera do sistema governamental, fazer uma profissão
pública de fé e ser batizado. A participação nos rituais das igrejas –
principalmente das seitas – como a ceia, era ainda mais parecido com os rituais
das sociedades secretas.
Ainda se podem ver outras
semelhanças entre a igreja protestante e as sociedades secretas – coffee
houses, salões – como o ato de mandar cartas informativas entre elas, como
aconteceu com as firmas comerciais que se internacionalizavam. Além disso, como
a igreja protestante tende a esposar a mentalidade de classe média, da mesma
forma que se faziam distinções sociais para se aceitar como membro de uma das
sociedades europeias, distinções sociais – saber ler, por exemplo, ou ser
empregado – distinções semelhantes foi feitas a quem postulava entrar numa das
igrejas. Assim, da mesma forma que os cafés herdaram os temas que a
aristocracia e intelectualidade europeia discutiam, a igreja, em suas reuniões
de negócios – sessões – discute, com suas portas fechadas, seus negócios
internos.
A igreja, por mais boa vontade
ou romanticamente se olhe para ela como agente divino, não se pode negar que
ela esposa as mentalidades que a sua própria historicidade vive e lhe
apresenta. Tanto a apresentação como a sua historicidade são elementos
norteadores e limitadores daquilo que a igreja vê, compreende e faz no seu
presente. Não é segredo, portanto, que a igreja imita, em parte, as práticas
sociais da sociedade, tanto das pessoas como das organizações comerciais, políticas
e econômicas do seu tempo.
Por tudo isso, ainda que a
igreja reivindique achar versículos bíblicos e basear suas práticas em tais
versículos, suas práticas são, acima de tudo, ligadas à história. Isso serve
para suas interpretações quanto ao fato de o negro ter ou não alma, dos pobres,
da justiça social, política, econômica e das mulheres. Não é segredo, por
exemplo, que os batistas, desde o seu surgimento, já passaram do calvinismo
para o arminianismo, do presbiterianismo para o calvinismo, do avivalismo para
o tradicionalismo, da rejeição do governo na Europa para ser governo na América
do Norte, de aspersionistas para imersionistas. Em cada uma dessas fases, essa
igreja reivindicou basear-se em princípios infalíveis e hermenêutica saudável
no manuseio da Bíblia. As mudanças, contudo, não são rápidas e pacíficas. Como
a sociedade burguesa habermasiana, formada por homens livres do poder estatal,
as mudanças no interior de uma igreja como a Batista se dá através dos séculos,
com discussões podendo décadas – algumas duram pouco tempo – e através das
lutas entre os diversos grupos e seus interesses.
Elias (1993), no entanto, vai
ainda mais longe. Sua abordagem histórica acerca das relações entre homens e
mulheres chega até o século nono. Segundo escreve, a sociedade europeia daquele
tempo caracterizava-se pelo homem cavaleiro, dono de terra, guerreiro,
portanto, sem qualquer necessidade de mostrar atitudes de cavalheiro. A
delicadeza, principalmente em se tratando de mulheres, não era vista como uma
virtude. Segundo Elias (1993, p. 76) a sociedade medieval tinha, em todo lugar,
fortes traços da dominação masculina, e, ao mesmo tempo, um “parcial eclipse
das mulheres”. Esse autor é de opinião que as questões tidas como fundamentais
e até necessárias nas relações entre os homens nos séculos vinte ou vinte e um
são fruto de séculos em que os costumes foram se modificando e as pulsões e
paixões passaram por um processo de vigilância muito grande.
Ainda que se conheçam relatos de
que, desde o século doze em algumas cortes na França a mulher tinha tantas
oportunidades quanto o homem, como ser senhora feudal, possuir propriedades e
até desempenhar papel política. Mas, devido à função guerreira, o que
predominava era que o homem, seja ele camponês ou rei, não era dado a tratar a
mulher com qualquer recato. Em todos os casos, o homem mandava e não se faziam
quaisquer disfarces para que o mando masculino fosse de alguma forma, velado ou
particular. Ele não fazia distinção entre sua esposa e outra mulher,
principalmente se fosse de classe inferior. Naqueles tempos, a mulher sofria de
um desprezo explícito. Não eram raros os relatos de esposos que espancavam suas
mulheres, como no seguinte relato de Elias (1993 p. 75-6):
Parecia ser um hábito, quase tradicional do
cavaleiro, enraivecendo-se, socar a esposa no nariz até o sangue correr. “O rei
ouviu isso e a raiva coloriu lhe o rosto; erguendo o punho, atingiu-a no nariz
com tal força que tirou quatro gotas de sangue. E a senhora disse: “Meus mais
humildes agradecimentos. Quando lhe aprouver, pode fazer isso novamente”.
Nesse tempo, ouvir o conselho de
mulher, mesmo sendo esposa, era vergonhoso. O homem que ouviu conselhos de uma
mulher era expor-se a ser censurado. A sociedade medieval deixava bem claro o
espaço do homem e da mulher. A qualquer mulher que ousasse se dirigir ao homem
com alguma sugestão deveria ser lembrada de que seu lugar era nos aposentos
mais íntimos da casa, junto com outras mulheres. “Senhora, retire-se para o seu
lugar e coma e beba com sua corte em suas câmaras pintadas e douradas, ocupe-se
em pendurar cortinados de seda, pois esse é o seu senhor. O meu é cortar com
espada de aço” (ELIAS, 1993, p.76). O lugar da mulher era a câmara enfeitada,
na privacidade de seus aposentos, o do homem, a guerra.
Ser cortês, naqueles tempos, ter
uma atitude cortesã, só em casos excepcionais. Quando tais atitudes se davam,
ficavam restritas aos círculos das grandes cortes feudais. O normal, naquele
tempo, era a atitude brutal e desrespeitosa para com a mulher. Segundo o nosso
autor, essas atitudes duraram até cerca do século dezesseis. Enquanto a
sociedade era dominada por uma classe guerreira, militar e agrária, prevaleceu à
dominação acintosa do homem sobre a mulher. Daí não ser tão estranho que
a sociedade da qual Habermas trata dar conta de clubes e sociedades masculinas
que vedavam à mulher qualquer participação, como vimos anteriormente.
A modificação no comportamento e
no trato foi-se modificando lentamente ao longo dos séculos em que o comércio e
o uso de moedas foram sendo popularizados, à proporção que as cidades foram
crescendo em volta da corte, quando a sociedade não precisou mais viver em
função da guerra e o cavaleiro passou a estar mais presente na sua própria
sociedade. Essa mudança do centro de gravidade das relações nas cortes foi
motivo também para uma lenta, mas contínua mudança nas relações entre os homens
e mulheres. Como explica o nosso autor (1993 p. 77-8): “em todas as ocasiões em
que homens são obrigados a renunciar à violência física, aumentou a importância
social das mulheres”. A mulher, portanto, ganha mais importância a partir da
existência de uma sociedade pacífica. Nesta ela pode estudar, cultivar uma vida
intelectual e voltar-se para áreas como estética e luxo.
Na sociedade da qual Elias se
dedica a expor, sociedade dominada pelo homem, as relações afetivas também
precisam ser vistas naquela perspectiva. Não só o tratamento físico tendia a ser
violento, quanto à demonstração de sentimentos também era inexistente.
[…] homem a conter suas pulsões e a impor-lhes
controles. Pouco se falava de “amor” na sociedade guerreira. E ficamos até com
a impressão de que um homem apaixonado teria parecido ridículo nesse meio de
guerreiro. De modo geral, as mulheres eram consideradas inferiores. Havia
mulheres em número suficiente e elas serviam para satisfazer as pulsões
masculinas nas suas formas mais simples. As mulheres eram dadas ao homem para
“sua satisfação e deleite […] O que eles procuravam nas mulheres era o prazer
físico e, à parte isso, “dificilmente se encontrava um homem com paciência para
aturar a esposa” (ELIAS, 1993, p. 78).
As relações afetivas como
demonstração de amor, o elogio à beleza feminina, para esse autor, acontecia
quando o homem de classe inferior se referia à mulher mais elevada socialmente.
Nos outros casos, prevaleciam a dominação, não os afetos “era apenas o
relacionamento de um homem socialmente inferior e dependente com uma mulher de
classe mais alta que dava origem à contenção, à renúncia e à consequente
transformação das pulsões […] o que tornava a mulher inacessível, ou acessível
apenas a duras penas e, talvez porque fosse ela de classe mais alta e difícil de
conquistar, especialmente desejável” (ELIAS, 1993, p. 79). Por esse relato
vê-se que o sentimento e a linguagem do amor tiveram um contexto todo
particular. Tão raro nas eras medievais, com o tempo passou a ser uma atitude
essencial nos relacionamentos entre homem e mulher nas sociedades mais
recentes. Dito de outra forma, a cortesia nas relações do homem e da mulher
teve o seu fundamento entre os membros socialmente mais dependentes da
sociedade em relação a uma mulher pertencente a uma classe socialmente
superior.
Georges Duby (1996) é outro
autor que pode nos ajudar na formação e formatação desse imaginário masculino
sobre a mulher. Esse autor fez uma pesquisa buscando descobrir o que as
mulheres faziam no século doze na França, o que falavam como riam como se
comportavam. Pouca coisa descobriu. As mulheres não “falavam”. Os homens
falavam dela. E mal. A mulher era a portadora do pecado. Cabia ao homem
manter-se afastado dela. A mulher não apenas tinha trazido o pecado ao mundo
através de Eva, ela aumentava o pecado através de seus pecados. No seu livro,
Duby mostra os escritos dos teólogos e doutrinadores do século doze ensinando
os homens a como se portar e comportar diante da mulher. E, quando se dirigem à
mulher, estão cheios de recomendações e recriminações. Lembremos aqui que no
século doze é praticamente impossível pretender que algum outro autor ou
conselheiro que escreva o faça longe dos mosteiros ou das catedrais europeias.
Nesses escrito, o homem, era
sempre o possuidor da razão, a mulher, possuidora da inconstância, do pecado,
do fogo, das tentações. O homem, possuidor de direitos. À mulher cabia a
resignação e o entregar-se. Ser dominada e domada era o destino da mulher. Por
isso mesmo, para o homem manter-se puro, não lhe ficava bem os bons modos, as
boas maneiras. Mostra disso está num conselho dado aos homens sobre as maneiras
corretas de se aproximar de uma mulher. “Se, pela sua categoria, tiver mais
privilégios do que ela pode sentar-se junto dela sem lhe pedir licença; se for
da mesma categoria, pede-lhe e, com o seu acordo, senta-se perto dela, mas
nunca sem isso”, (DUBY, 1996, p. 161).
À mulher são atribuídos os
piores pecados da humanidade, principalmente aqueles referentes à sexualidade.
Já que é colocada em posição inferior em relação ao homem, explica-se porque os
homens tinham tanta liberdade quanto ao sexo. O sexo é um privilégio que o
homem pode usar livremente, ao passo que tais direitos eram negados à mulher a
ela. “Se, por acaso, tiveres atração por labregas, evita lisonjeá-las” -
escreve um teólogo, monge e capelão chamado André no final desse século, 1186 -
[…] se encontrares ocasião favorável, não hesites em satisfazer o teu desejo,
toma-a pela força […], é preciso obrigá-las e curá-las do pudor que têm”,
(DUBY, 1996, p. 160). Se o homem tiver vontade de possuir uma mulher, pode
forçá-la a ter relações com ele contra a sua vontade. Um homem, ao obrigar a
mulher, ele estará lhe fazendo um favor, curando-a do pudor que ela porventura venha
a ter. A atração que um homem viesse a sentir por uma mulher de classe
inferior, não devia, no entanto, ser manifestada de forma visível. Homem de
classe superior estava proibido de sentir afeição ou amor por mulher inferior.
É preciso, portanto, evitar os elogios, o carinho.
Agora, não estamos mais diante
do marido que pode espancar sua mulher até lhe tirar o sangue. Isso faz parte
de uma legislação posterior, já faz parte dos bons modos. Estamos tratando de
um tempo em que o homem, contanto que seja socialmente superior à mulher, pode
tomar-lhe a satisfazer-se. Aqui não inclui qualquer ligação familiar. Não
envolve sentimento. Impera a vontade, o desejo. Não é o marido que tem a
autoridade sobre a esposa, é o homem dotado de vontade que usa sua posição
social para satisfazer-se.
As relações românticas ou a
presença do sentimento amoroso da mulher para com o marido ou do marido para
com a esposa deve ser experimentada com cuidado. Apaixonar-se demais pela
esposa é pecado, recomenda o monge André. O homem que ama muito a sua esposa
adultera contra ela, pois começa um amor dividido, pela esposa e por Cristo.
Por sua vez, a mulher não deve amar muito a seu marido, visto que,
espiritualmente, ela pertence a outro marido, o marido espiritual, Cristo. Ela
deve entregar seu corpo a seu marido, mas tendo sempre em mente que deve
entregar seu espírito ao outro marido, ao outro senhor. Dessa forma, a mulher é
sempre esposa de dois maridos, um carnal e outro espiritual.
Pelo fato de a mulher ser sempre
condenada desde o éden por sua luxúria, ela perdeu o privilégio de ter prazer
na sua sexualidade. Portanto, deve viver para seu esposo e satisfazer-lhe os
desejos, que são santos. No entanto, ao homem é dado o privilégio de poder
experimentar relações sexuais com outra mulher além da sua esposa. É o próprio
André, monge e teólogo quem pergunta e responde acerca do compartilhamento do
corpo da mulher com outro homem e do homem com mais de uma mulher.
Será permitido a uma mulher dividir-se por dois
amantes? Claro que não. “Isso é tolerado nos homens porque está nos seus
hábitos e porque é privilégio do seu sexo realizar de boa vontade o que, neste
mundo, é desonesto por natureza. Mas numa dama, o pudor que a reserva do
seu sexo exige torna esta conduta tão culposa que depois de se ter dado a
vários homens se torna indigna de ser admitida na companhia das damas” (DUBY,
1996, p. 179, itálicos meus).
Os comentadores, professores,
juristas, doutrinadores do século doze eram, todos eles, padres, monges e
bispos. Eles formavam uma classe de homens diferente dos outros homens. Homens
de Deus. Homens, por conseguinte, superiores aos outros homens. Homens que,
ainda que vivendo neste mundo, não são deste mundo. Homens assexuados. São
exatamente esses homens, espirituais, homens de Deus, sem mulher que ensinam e interpreta
o mundo para os homens deste mundo, homens do mundo e no mundo, homens que
vivem com e entre as mulheres. São esses homens que, em boa parte deles, nunca
experimentaram o sexo com uma mulher, sentem, no entanto, no corpo os mesmos
desejos de um homem normal. Por isso mesmo, a mulher passa a ser sempre um
espaço de tentação, sujeitas, portanto, a todo tipo de julgamento depreciativo,
negativo. Homens de Deus que têm medo de mulheres. Misóginos. No entanto, são
esses mesmos homens que orientam, dão a base e a sedimentação para que o homem
que tem mulher ou que com ela se relaciona saiba como se comportar, saiba o que
e como fazer com a mulher. De alguma forma, a relação e o imaginário ocidental
moderno sobre a relação homem e mulher tem um fundamento religioso, o
fundamento católico. O protestantismo não mudou nem sugeriu qualquer mudança
nessa relação. Como tantas outras coisas, adotou algumas práticas do catolicismo
que rejeitava como práticas dentro de suas igrejas.
CONCLUSÃO
Investigamos os fundamentos da
proibição da mulher falar em uma reunião pública da igreja batista em Salvador,
para tanto, nossa hipótese inicial era que tal prática doutrinária não tinha
necessariamente uma origem bíblica, segundo alegavam os batistas. Ter origem
bíblica e ter fundamentação bíblica nos parece ser duas coisas bem diferentes.
As práticas sejam elas quais forem – escravidão, pena de morte, proibições
alimentares, casamentos e divórcios – podem ter uma base escriturística, mas
são essencialmente históricos. Aplicaram-se diversos textos bíblicos para
fundamentar tais práticas. Porém, todas as outras práticas que substituíram as
antigas tiveram, igualmente, outros tantos versículos que fundamentavam a
mudança e instalavam as novas práticas.
A proibição de a mulher falar na
igreja veio para o Brasil como uma doutrina das igrejas dos Estados Unidos.
Naquele país, conforme já pontuamos, somente permitiram que as mulheres orassem
em voz alta no século dezenove. Foi nesse século, provavelmente em virtude das
condições sociais impostas pela guerra civil, que se permitiu que as mulheres
servissem como enfermeiras, professoras ou missionárias. Mostramos que as
práticas das igrejas norte-americanas tiveram como fundamento o costume que se
praticava nas sociedades, lojas, clubes e salões da Europa. Nesses salões, as
mulheres eram até mesmo proibidas de frequentar, herança de uma sociedade
feudal, senhorial e guerreira onde os homens tinham o direito divino de mandar
e o direito social de tirar sangue do nariz da esposa. Em reconhecimento, a
mulher precisava agradecer ao marido por lhe fazer este bem.
A proibição protestante trazida
da cultura norte-americana era igual à praticada pela cultura católica
portuguesa – tecida num ambiente machista e moura. O que um povo proibia pela
Bíblia o outro proibia pelo costume. Por motivos diversos, católicos e
protestantes criam e ensinavam as mesmas coisas. Ambos acreditavam no poder
divino do homem sobre a mulher. Um mandava pela força física, o outro
acreditava fazê-lo pela imposição de uma “fundamentação” bíblica. Não foi
difícil ao convertido brasileiro santificar algumas das práticas que já fazia
por costume, por tradição. Essas práticas, contudo, agora estavam santificadas
e autorizadas em virtude do uso da Bíblia. Nesse ponto, católicos e
protestantes se descobriram irmãos.
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*Mestre em Ciências da Religião (UMESP), Doutor em
Sociologia (UnB), Pós-Doutorando (PUC/GO), professor na Faculdade Teológica
Batista de Brasília (FTBB) e professor convidado da Universidade Federal do
Maranhão (UFMA). E-mail: profarau@gmail.com
Fonte> http://pastorazenilda.blogspot.com.br/
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